Grandes responsabilidades para pequenas responsáveis

Mesmo em pleno século XXI, o Brasil, dado por sua construção histórica, enfrenta diversos problemas sociais. Juntamente com a ineficácia dos...



Mesmo em pleno século XXI, o Brasil, dado por sua construção histórica, enfrenta diversos problemas sociais. Juntamente com a ineficácia dos aparelhos governamentais, a amplitude territorial do pais dificulta a ação de combate à muitas dessas problemáticas. Contudo, ainda que existam várias pautas para discussão hoje refletiremos de forma mais profunda sobre o Casamento precoce. Por que deve-se preocupar? Como conscientizar a população? Quais os prejuízos para a população em geral? Clique em READ MORE para conferir mais!
História da Infância na Antiguidade 


Toda a pauta de discussão sobre a necessidade de medidas contra o Casamento Infantil é baseada primordialmente no conceito de infância e de proteção à mesma. Portanto é preciso compreender os aspectos históricos e psicológicos da construção da infância.
Segundo o artigo de Jeane Kuller para a Universidade Estadual do Centro-Oeste - UNICENTRO inicia-se a discussão observando a discrepância entre a visão com relação á criança na antiguidade e na atualidade. As crianças até os 7 anos de idade eram consideradas incapazes de produzir fala, pensamento lógico ou expressar sentimentos. Realidade expressa na origem da própria palavra que significa 'incapacidade de falar'. 

       [...] a definição da palavra infância, oriunda do latim infantia, significa ‘incapacidade de falar’. Considerava-se que a criança, antes dos 7 anos de idade, não tinha condições de falar, de expressar seus pensamentos, seus sentimentos. (CORDEIRO; COELHO, 2007, p 884).

Diante disso, vemos que aspectos psicológicos intrínsecos à infância não eram levados em consideração pela sociedade. E consequentemente não havia qualquer tipo de medidas ou costumes protetivos voltados para as crianças. Eram tratados com insignificância, e a infância em si era vista como apenas um processo biológico, o qual não necessita atenção especial.

 [...] verificamos que a concepção de infância, até então não existia. As crianças eram vistas como seres incompletos e incapazes, viviam misturados com os adultos sem qualquer cuidado e atenção especial. Essa visão só mudaria a partir do século XII. (KULLER, Jeane)

O que muito se sabe sobre os períodos anteriores à modernidade é que crianças eram estigmatizadas como pequenos adultos, tratados de forma igualitária para com estes. Hoje, sabe-se que esse comportamento nada traz dignidade à esses seres.

[...] Os adultos se relacionam com crianças sem discriminações, falavam vulgaridades, realizavam brincadeiras grosseiras, todos os tipos de assuntos eram discutidos na sua frente, inclusive a participação em jogos sexuais. Isto ocorria por que não acreditavam na existência da inocência pueril, ou na diferença de características entre adultos e crianças [...] no mundo das formulas românticas , até o século XIII, não existem crianças caracterizadas por uma expressão particular, e sim homens em tamanho reduzido[...]. (ARIÈS, citado por ROCHA [20--], p.55).

Com o avanço da ciência, tomou-se conhecimento das diferenças entre essa fase da vida e as fases mais tardias. De forma que começou a ser percebido as habilidades desses seres, antes considerados incapazes. E também por outro lado a necessidade de um cuidado maior, visto que as taxas de mortalidade infantil eram elevadas. Assim, inicia-se uma batalha contra as taxas de mortalidades. Conseguintemente também ocorre o envio das crianças para escolas, a favor de moralizá-las. Ambos fatores contribuintes para a criação da infância.

 As crianças agora começam a ser entendidas como ser individual com vontades e pensamentos. [...] Agora as famílias são mais numerosas e preocupam-se com suas crianças, tendo o cuidado de protegê-las dos perigos existentes na sociedade. A família assume a sua função, ou seja, passando a perceber a criança como um ser frágil que necessita de cuidados e de carinho, assim com o novo sentimento de infância surge também uma nova família agora preocupada com seus filhos, o que não era possível se ver antes do século XII. (KULLER, Jeane)

As crianças passam a estar, então, separado dos adultos. Ao invés dos ensinamentos de hábitos e profissões pelo convívio, as crianças são enviadas para as escolas. Esta separação possibilitou a exigência de “segredos”, isto é, assuntos conhecidos apenas pelos mais velhos. Em outras palavras a concepção de infância moderna, que se estende até os nossos dias, seria o seguinte: uma fase da vida em que os indivíduos precisariam de cuidados especiais e deveriam ser resguardadas de algumas informações que pudessem lhes ser nocivas para que se desenvolvessem e se construíssem, no futuro, como indivíduos plenos. (GUARANA, 2007, não paginado).


Entre os séculos XVIII e XIX ocorria a Revolução Industrial, que mais uma vez ocasionou mudanças no papel da criança na sociedade. Começam a ser enxergadas como potenciais mãos de obra e muitas começam a ser retiradas das escolas para ingressarem no mercado de trabalho em fábricas. O que configurou um retrocesso para a infância, trazendo a cassação de direitos básicos, exploração intensa e, muitas vezes a responsabilidade de sustentar a família era imposta para esses pequenos seres. É visto real avanço apenas entre os anos de 1850 a 1950, onde há progresso na investigação por parte das ciências humanas sobre essa fase da vida, que estudou os aspectos e as ações direcionadas à esses indivíduos, comprovando benefícios e malefícios por meio científico. Assim, novamente mudou a visão relacionada às crianças e muitas foram retiradas das fábricas e recolocadas nas escolas. 

 A criança, começa a ocupar seu lugar na sociedade. Ela passa a não mais fazer parte do mundo adulto, pois tem agora seu espaço que não se pode chamar de ideal, já que junto com seu reconhecimento vieram também as limitações. Agora elas ficam enclausuradas em instituições escolares, ficando excluídas da vida social adulta. A criança não pode mais participar do que antes era comum em sua rotina (festas, conversas entre outros eventos), a ela cabe apenas atividades específicas para a idade. (KULLER, Jeane)

Dessarte, com a evolução da visão para com a criança, a criação da infância durante os séculos, e a comprovação dos prejuízos de certas práticas para com essas por meio da ciência, no âmbito jurídico começam a aparecer legislações específicas direcionadas à esses seres. Assim, decorrentes das várias problemáticas que ainda perpetuam durante os séculos:  o desrespeito de direitos básicos, a falta de separação de responsabilidades de adultos e crianças e a falha na proteção da infância de forma geral.

Problemáticas persistentes com relação à infância


Agora que já é de conhecimento o processo de criação da Infância, os fatores que causaram isso e sua importância, façamos um pulo na história para o presente século no Brasil. Onde mesmo que exista um progresso na visão com relação à criança e existência de legislações voltada aos mesmos, muitos dos direitos assegurados não são cumpridos e aflige a noção de infância como também a legislação do país.


Ref: Veja


Ref: G1





Além dos citados, existem muitos outros problemas envolvendo crianças no Brasil, mas hoje iremos nos aprofundar na temática do Casamento Infantil, em que o país ocupa 4º posição no ranking mundial ficando atrás apenas da Índia, Bangladesh e Nigéria (Ref: Marie Claire). Todavia, diferentemente de alguns outros países da lista, no Brasil não se trata de parte de rituais religiosos ou algo de mesmo cunho, e sim uma prática institucionalizada, normalizada principalmente entre comunidades desfavorecidas economicamente. E ainda que meninos também sejam fragilizados por essa prática, pesquisas e dados apontam que as mais prejudicadas são as meninas. Segundo a pesquisa "Ela vai no meu barco: Casamento na Infância e Adolescência no Brasil" realizada pela ONG Promundo, cerca de 11% das mulheres brasileiras com idades entre 20 e 24 anos se casaram antes dos 15 anos e 36% do mesmo grupo casaram antes dos 18 anos. "Embora tanto meninos quanto meninas vivenciem casamentos infantis, meninas são significativamente afetadas por essa prática". A problemática perpassa por questões de classe, gênero e raça como podemos ver a seguir: 

Os dados apontam (IBGE, 2012), que o número de adolescentes negras grávidas é superior ao número de adolescentes brancas grávidas, considerando as idades de 12 a 18 anos. Além disso, quando comparado o nível de escolarização e permanência na escola após a gravidez, a partir do viés racial, o número de adolescentes negras que abandonam a escola é maior do que o número de adolescentes brancas. - Extraído do Anais do 16º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais.

Malefícios da prática


O casamento infantil mesmo sendo estatisticamente preocupante, não se mostra relevante em relação à políticas públicas direcionadas à mesma por, na visão de muitos, não se tratar de um problema e sim do curso natural da vida ou até mesmo uma questão de escolha. Assim, configura-se como uma prática velada e passada de geração em geração. As avós das meninas desta geração casaram cedo, assim como suas mães e as mesmas. Desta forma, é a única opção apresentada em muitas famílias. 

“Muitas pensam que casando vão ter a liberdade que não encontram nas famílias, mas a pesquisa mostra que a situação do casamento só aumenta o controle sobre elas”, afirma Alice Taylor, coordenadora da Pesquisa (Ela vai no meu barco).

Uma produção audiovisual muito aclamada que retrata perfeitamente como se dá essa prática passada em meio da família, na qual não existe mudança de perspectiva ou opção distinta, principalmente nas famílias do Nordeste (Maranhão lidera o ranking de casamentos precoces do Brasil) é o curta Vida Maria, assista a seguir:


A principal característica explorada no curta é a impossibilidade de acesso à educação, não apenas pelo contexto de sertão que é retratado, mas também pelas relações de gênero, na qual a mulher é impelida a priorizar funções matrimoniais em detrimento da educação e crescimento pessoal. Ambos fatores assegurados pela constituição brasileira, mas que de forma velada e naturalizada não são cumpridos na sociedade. Vejamos alguns pontos relevantes apontados como malefícios dessa prática:

- Gravidez precoce
- Abandono escolar
- Manutenção das desigualdades de gênero
- Cassação da liberdade individual
- Vulnerabilidade econômica
- Naturalização da pedofilia legitimada pela união matrimonial
- Controle sexual 

"Segundo a Unicef, afora os possíveis problemas de saúde (de ordem física e psíquica), as jovens nubentes ainda têm chances mais escassas de terminar os estudos e, estão sujeitas a serem vítimas de abusos (ou mais abusos) e de se manterem em seus ciclos de pobreza. Não há dúvidas, portanto, da gravidade do problema social cíclico relacionado aos casamentos infanto-juvenis, os quais têm como fator relevante gestações prematuras."

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Casamento precoce na legislação 


Como legislação no tocante ao ponto do Casamento infantil em si há a Lei n. 13.811 no art. 1.520 do Código Civil Brasileiro que recentemente foi alterada para proibir em todo caso o casamento até a idade núbil (16 anos). Após essa idade o casamento pode ocorrer com a autorização dos responsáveis de ambas as partes ou a parte de menor. No tocante às questões adjacentes ao casamento precoce temos as seguintes leis:

Código Penal - “Estupro de vulnerável”

Art. 217-A.  Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: 

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. 

 Estatuto da criança e do adolescente:

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. 


Referente à conjunção carnal trata-se que em muitos casos, há a realização do ato sem consentimento ou entendimento pleno da criança. E referente ao Estatuto temos o fenômeno de abandono escolar que impede o cumprimento das direitos à educação, à saúde e à dignidade. 

“Quando as crianças casam, as suas perspectivas de vir a ter uma vida saudável e bem-sucedida diminuem drasticamente, desencadeando muitas vezes um ciclo intergeracional de pobreza. As meninas noivas têm menos probabilidades de terminar a sua escolaridade, mais probabilidades de vir a ser vítimas de violência e de serem infectadas com o VIH. As crianças de mães adolescentes correm um maior risco de vir a ser nados-mortos, de morrer após o parto ou de ter baixo peso à nascença. As meninas noivas muitas vezes não dispõem das competências necessárias para o mundo do emprego.”

(UNICEF – Comunicado de imprensa – ‘O número de meninas noivas em África pode mais que duplicar para 310 milhões até 2050 - UNICEF GENEBRA/NOVA IORQUE, 26 de Novembro de 2015’)

Ainda que hajam legislações específicas, ainda é muito tímido o combate à essa prática. Juntamente com a desinformação e falta de conscientização, o não cumprimento das leis ocasiona na perpetuação do ato na sociedade.

Como proceder?

Por tratar-se de uma prática velada mas que traz muitos retrocessos para a sociedade, é necessário promover ações de conscientização entre as famílias principalmente. Ações envolvendo a escola e propagandas pela mídia, sempre baseadas em pontos científicos e dados estatísticos verificados para conferir veracidade das ações. Também, para que a legislação seja cumprida é preciso realizar denuncias de uniões informais categorizadas como prejudiciais, posto que até os 18 anos o indivíduo é considerado vulnerável pelo código civil e não tem condições de tomar decisões por si próprio até que atinja a maioridade. Outrossim, deve-se pressionar as autoridades jurídicas e civis para criação de legislações que dificultem ainda mais essa prática visando o bem-estar das crianças e manutenção da infância, direitos assegurados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. É importante ressaltar que uma sociedade que mantém casamentos precoces geralmente é relacionada ao subdesenvolvimento dos países, por fatores educacionais, empregatícios e de  descumprimento das regras do código civil referente ao bem-estar dos indivíduos e noções de liberdade e igualdade. Existe uma longa caminhada da sociedade até a criação da infância, e a manutenção dela deve ser um dos objetivos principais da mesma.

Artigo por Cláudia Raquel Cardoso

                                                                       02/07/2020


Bibliografia:

Kuller, Jeanne. INFÂNCIA: DISCUTINDO O TERMO PELO VIÉS DA HISTÓRIA. Disponível em: http://www.histedbr.fe.unicamp.br/acer_histedbr/seminario/seminario8/_files/H43ASEPS.pdf. Acesso em 01/07/2002

CORDEIRO, Sandro da Silva; COELHO, Maria das Graças Pinto. Descortinando o conceito de infância na história: do passado à contemporaneidade. Junho. 2007. Disponível em:http://www.faced.uf.br/colulhe06/anais/arquivo/76SandroSilva Cordeiro_ MariaPintoCoelho.pdf. 

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2 ed. Rio de Janeiro: LTC, 2006

GUARANÁ, Deborah. O conceito histórico da infância.15 de dezembro de 2007. Disponível em: http//www.overmundo.com.br/overblog/o –conceito –histórico –da– infância – 36k-. 

ANAIS DO 16º CONGRESSO BRASILEIRO DE ASSISTENTES SOCIAIS. O casamento infantil como expressão da desigualdade social: um reflexão necessária para o desvelamento da realidade. 3 de novembro de 2019. Disponível em: http://broseguini.bonino.com.br/ojs/index.php/CBAS/article/view/1121/1097. Acesso em 01/07/2020

VEJA: https://veja.abril.com.br/brasil/brasil-registra-diariamente-233-agressoes-a-criancas-e-adolescentes/Acesso em 02/07/2020

UNICEF: https://www.unicef.org/brazil/situacao-das-criancas-e-dos-adolescentes-no-brasilAcesso em 02/07/2020

G1: https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/09/01/no-de-fiscalizacoes-de-trabalho-infantil-e-o-2o-menor-registrado-nos-ultimos-10-anos.ghtmlAcesso em 02/07/2020

MARIE CLAIRE: https://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2019/06/estudo-aprofunda-causas-e-consequencias-do-casamento-infantil-no-brasil.htmlAcesso em 02/07/2020

CATRACA LIVRE: https://catracalivre.com.br/catraquinha/pesquisa-apresenta-dados-sobre-casamento-na-infancia-no-brasil/Acesso em 02/07/2020

GENJURÍDICO: http://genjuridico.com.br/2019/03/28/a-lei-n-13-811-2019-e-o-casamento-do-menor-de-16-anos-primeiras-reflexoes/Acesso em 02/07/2020

JUS.COM.BR: https://jus.com.br/artigos/53428/casamento-infantil-direitos-humanos-e-o-direito-publico-internacionalAcesso em 02/07/2020

GAZETA DO POV: https://www.gazetadopovo.com.br/justica/senado-aprova-lei-para-dificultar-o-casamento-infantil-a-alteracao-legislativa-e-necessaria-6tlpgmius5mersr8xxvpzd4rx/#:~:text=O%20Estatuto%20da%20Crian%C3%A7a%20e,ou%20representantes%20legais%20ou%20judicial.Acesso em 02/07/2020



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